quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Ontem foi melhor

Mariane de Macedo


16 de setembro de 2010

            O farfalhar das folhas tocadas pelo vento na calçada era o único som identificado por Narciso. Na casa havia um silêncio que se estendia pelos cômodos, onde ainda permanecia o mesmo cheiro, que por tanto tempo o acompanhara. A casa cresceu. Existiam muitos espaços não mais habitados, tudo estava maior, até mesmo sua voz parecia alta.

           Ficar sozinho sempre fora sua predileção, mas a lembrança dos olhos negros, que pouco a pouco foram perdendo o brilho, da voz que se foi escasseando, dos beijos e carícias por obrigação, até o par de malas na porta, deixavam-no inquieto. As últimas palavras carregadas de mágoa demonstravam o tempo perdido. Caminhar, abrir e fechar portas se tornara agora sua rotina.

         Tentava retomar sua vida, mas não se lembrava mais do que gostava, do que fazia antes dela. O tempo havia passado tão rápido e nem percebera. Não se reconhecia, havia ficado frouxo, pois as lágrimas já lhe escorriam pela face. Queria acreditar que estava aliviado, que seria melhor obedecer à razão. Mas os sentimentos lhe traíam, a todo o instante, convidando-o tomar uma atitude, o que não podia fazer.

           A rede ainda estava pendurada no mesmo lugar do pátio, porém vazia. Retirou-a dos ganchos que a prendiam e dobrou-a, lentamente, para que ficasse uniforme. Só iria usá-la dali a duas estações. Quando retomou o caminho para o interior da casa, apressou o passo, olhar para trás era a saudade de ontem. Sentia raiva de si mesmo, pois vivera como se fosse infeliz, com queixas, críticas, birras e vinganças, mas toda esta verdade que lhe doía no peito forçava-o a ver que tudo isso era mentira.

        Na garagem o carro com a cor, escolhida por ela, brilhava. Pegou a chave entrou e saiu em alta velocidade. Com o vidro aberto, sentia o vento frio batendo em seu rosto. Sem rumo, apenas dirigia escutando o rádio que insistia nas mesmas melodias, que ouviam juntos. Sem perceber havia parado em um local conhecido. Levantou os olhos e viu a silhueta de uma mulher pela janela, atrás da cortina. O seu corpo gritava por ela, que sempre se entregara sussurrando, plena, quente, ardente. Essas lembranças acudiam-lhe ao cérebro atormentado, e agora eram permitidas apenas em sonhos, dos quais nunca queria acordar.

          Decorridos minutos a luz acendeu e pode vê-la melhor. De olhos fixos em suas feições, teve ânsias de guardá-la nos braços, afagar o seu cabelo sedoso. Por um momento, vagava- lhe no coração uma saudade infinita, que deixava transparecer profunda fraqueza, que lhe anulava as últimas resistências. Queria saber como estava? Com quem ela andava? Odiava não conhecer de sua rotina, mas era apenas por curiosidade, pois fizera a melhor escolha. Ao ver-se descoberto, deu ré e foi embora, assustado.

              

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A Batalha

Mariane de Macedo
02 de setembro de 2010


                      Ana já estava com oito anos e com o nascimento do maninho, a mãe não conseguia mais levá-la à escola, que ficava a quatro quadras de sua casa. Era mês de março e a aula no horário em que o sol estava mais quente, por isso fora liberada a fazer aquele percurso. Durante o trajeto passava em frente a uma loja, onde permanecia por alguns minutos, observando os brinquedos na vitrine. A loja ficava em uma casa antiga, que havia sido reformada preservando o estilo colonial. Apenas uma vidraça inteira na janela mantendo a sacada de ferro, como forma de decoração. Mas, para Ana servia de degrau, onde ficava na ponta dos pés, que impulsionando o corpo sobre os ferros, visualizava os brinquedos. A boneca Susi vestida de noiva se destacava. Chegando em sua casa a menina foi ao encontro da mãe.

                  — Mãe, me dá a boneca lá da vitrine? — e para sua alegria a resposta foi positiva.

                  — Dou sim filha, depois de amanhã, quando seu pai voltar.

                  No dia seguinte a criança foi para a escola e só pensava no brinquedo. No recreio o assunto era a Susi de Ana: as colegas faziam acertos de como receberiam a nova amiga de suas bonecas e cada qual sugeria um nome. Algumas meninas brigavam porque desejavam ser madrinha da noiva. E assim, aquela tarde passou muito rápida. O sinal tocou, hora de ir.

                Na vitrine, a boneca piscava os olhos para menina, confirmando que no outro dia estariam juntas. Ana sorria. Despediu-se abanando, atirando beijos e um até amanhã. Não caminhava, saltitava rua fora a cantarolar.

               Naquela noite, o sono venceu os olhos que não queriam fechar, mas a boca não conseguiu colocar o sorriso para dormir. O sol não acordara e Ana já estava em pé, com agulha, linha e tecidos costurava algumas peças de roupas para sua filha. Já era quase meio dia, com o enxoval pronto a criança correu em direção à mãe.

             — Mãe! Vamos buscar minha Susi — convidou a menina.

             — Amanhã filha, hoje teu pai não está aí — e a mãe deu as costas e seguiu seus afazeres.

            Os olhos negros da criança foram se apagando junto com o sorriso. Ana saiu correndo sem olhar para trás. À medida que se distanciava da mãe, uma faca fincava-lhe na boca do estômago, deixando-a sem ar. Tentava gritar, mas apenas bolhas de saliva ocupavam a boca, cada vez que tentava abrí-la. As lágrimas percorriam-lhe a face rosada e infantil. O choro era apenas um grunhido baixinho, engolido pelo medo de ser descoberta sob a escada.

            No almoço a mãe não percebeu os olhos magoados da filha, nem lhe olhou. No caminho para à escola, mais uma espiadela na vitrine. A boneca permanecia lá, mas não lhe piscou os olhos.

            Na porta do colégio as coleguinhas vieram ao seu encontro, cheias de expectativas.

            — Ana, e a boneca? —perguntou uma das amigas.

            — Meu pai não estava ai — disse a menina com a voz embargada, e com os olhos baixos e úmidos — mas amanhã ele chega e minha mãe disse que vai me dar.

            Ela seguiu pelo corredor até a sala de aula sozinha, enquanto as colegas cochichavam.

           As horas não passavam, mas as folhas das árvores já começavam a cair, e o amanhã se distanciava. Mas o espiar na vitrine virou um ritual, percebido pelos donos da loja. Era um casal de velhinhos, que de tanto ver a menina pendurada enfrente a vidraça, convidavam-na para entrar na volta da escola. Ali ela ficava por alguns minutos e não desgrudava os olhos da Susi. O velhinho pegava a caixa da boneca e lhe oferecia para segurar um pouquinho. Com o peito batendo forte, as mãos suadas e um tremor no corpo agarrava a caixa devagar, olhando profundamente a boneca e depois a contraia ao peito, sabendo que era o fim de mais um encontro. Para casa, levava uma dor, que lhe doía no peito, até o outro dia.

            O frio intenso do inverno já não permitia as brincadeiras no pátio, e os recreios eram nos salões da escola, que convidavam às brincadeiras em grupinhos. Os meninos jogavam cartas ou bolinha de gude. As meninas brincavam de roda ou de bonecas. Ana assistia a tudo de longe, pois não tinha boneca e ninguém queria mais brincar com ela. As colegas riam e lhe chamavam de mentirosa. Ela corria pelo colégio fugindo da gurizada, que lhe provocava gritando bem alto. Mentirosa! Mentirosa!

           As estações continuaram a passar. Mas a menina ficou presa na vitrine. Ao ver-se nela refletida, o corpo estava adulto, e ali terminava sua batalha.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

A PROVA DE AMOR

Mariane de Macedo

              Na cidade de Conceição, a rua principal era paralela ao rio que banhava o lugar. No lado direito, casas coloridas com tribeiras em tons mais fortes, no esquerdo um corredor de plátanos enfeitava a margem do Rio das Antas. Além das moradias estavam todos os estabelecimentos comerciais — a correaria do João das Cordas, a confeitaria do Antonio e a venda do seu Manuel. Nesses locais os moradores de Conceição ficavam informados sobre os acontecimentos, antes mesmo de serem noticiados na rádio local. Mas dos três pontos era a venda o estabelecimento mais popular. Além de ser o mais bem localizado, ali havia mesas e cadeiras de pau a pique que acomodavam a clientela, tanto dentro como fora da venda, aproveitando a sombra das árvores que se estendiam sobre o telhado das casas. O vendeiro usava um avental branco, alvejado de anil, que utilizava para limpar as mãos antes de cumprimentar os clientes. Tratava-os com especial atenção, tapinha nas costas, sorriso de orelha a orelha e várias iguarias sobre as mesas, que iam direto para a caderneta no final da reunião.

             — O Manuel não poupa uma — dizia Inocêncio, seu cliente mais assíduo.

            Inocêncio era um homem simples, pacato, nunca alterava a voz, era de poucas palavras — às vezes em que abria a boca era algo de fundamento — afirmavam alguns dos clientes do Seu Manuel — embora muitos o considerassem abobado, pois não completara os estudos e nem dava sorte com o trabalho. Outros lhe achavam de um tipo estranho e solitário.

            No lugarejo e em especial na venda do Seu Manuel, as conversas passavam de boca em boca sem muita cerimônia, independente da permissão do vivente. E para Inocêncio as coisas não eram diferentes, aliás, ele sempre fora alvo de muita curiosidade. Vez por outra, quando não estava presente era personagem de pesquisa.

            — O que leva um homem a ficar sozinho por tanto tempo — cismavam alguns.

           — Mas as moças estão sempre lhe cortejando, o que há com o Inocêncio, pois até é bem afeiçoado.

          E assim a conversa ia se multiplicando, até um dia chegar aos ouvidos de Inocêncio, que respondia:

          — Não achei aquela que me dê uma prova de amor — e seguia quieto palitando os dentes com o olhar no horizonte.

           Aquela resposta virou confusão. O boato ia para lá e para cá, apenas com novo título —. Qual será a prova de amor que o Inocêncio precisa para se casar — Manuel instigava a clientela a descobrir — Ele está é muito exigente — saltava um — Deste jeito ficará solteirão — dizia outro. E a discussão ia até tarde da noite, enquanto Inocêncio permanecia distante daquele falatório, aguardando a sua prova de amor.

           Certa feita apareceu na venda um fazendeiro, que por morar no cafundó do município, quase não saía da casa grande. Mas, naquele dia se obrigou ir à cidade. Já havia recebido dois recados, que ainda não atendera, para uma entrevista com São Pedro, e precisava tomar uma providência.

           — Preciso casar minha única filha — dizia o velhinho preocupado — Tenho umas quantas léguas de terra, que já passei para Belindalva, mas quero uma pessoa honesta e trabalhadora, que cuide e proteja minha filha — a clientela da venda ficou entreolhando-se, mas não se atreveram a dizer nada, até a saída do fazendeiro.

          — Mas quem vai se animar a casar com aquela moça mais escroncha, que cobre o rosto pra tapar a feiúra? — ria Seu Manuel, acompanhado pelos freqüentadores do estabelecimento — A coitada vai ficar solteira por muito tempo — e as gargalhadas se multiplicavam.

          O clima já não permitia os encontros na frente da venda e num sábado chuvoso, cujo único entretenimento era a rádio local, os moradores de Conceição receberam a notícia, através das notas sociais. A Belindalva ia se casar. A informação foi veloz como uma flecha, debaixo dos guarda chuvas e sombrinhas, todos queriam saber sobre o noivo.  

          — Quem será a pobre vítima — perguntava a esposa de seu Manuel, sacolejando a barriga de tanto rir.

          — Deve ser gente de fora que não sabe que a bichinha é danada de feia — completou o João das Cordas.

         — Que nada é alguém mais feio do que ela — acrescentou o Antonio da confeitaria — e quando ia continuar foi interrompido por uma voz que vinha dos bancos do fundo da venda, ela era mansa e deixou um silêncio surdo no ar.

         — Sou eu o noivo! — e Inocêncio saiu arrastando as botas rua a fora em direção à margem do rio — Ela aceitou me dar uma prova de amor— enquanto todos permaneceram na porta da venda olhando-o.

         — Pobre do Inocêncio vai casar com aquilo! — falava o leiteiro —Só podia ser ele mesmo um homem tão manso.

        — Mas será que ela deu a tal prova de amor para o Inocêncio — diziam as mulheres curiosas.

       — Ele é tão abobado que não prestou atenção na feiúra da noiva, que estava com um véu no rosto — completava Seu Manuel.

       Os plátanos já haviam perdido suas folhas e o futuro sogro de Inocêncio foi para a entrevista, deixando a filha sob os cuidados do noivo, que não demorou a marcar a data do casamento. Mas não sem antes ter a promessa da moça de lhe dar a prova de amor.

       Casaram-se numa noite fria de inverno, o que novamente foi alvo de comentários: ele queria motivo para tapar bem o rosto de Belindalva.

       O casamento foi na fazenda. Grande fartura, como era do gosto de seu falecido pai. Enquanto os convidados seguiam para suas casas, o casal se retirou para a noite de núpcias, mas antes que a noiva tirasse o véu, Inocêncio cobrou o prometido.

       — Meu bem, se me amas de verdade deves passar essa primeira noite no jardim. Assim terei a certeza que não te importas de casar com um homem burro como eu.

        E ela foi.

        Inocêncio foi acordado aos gritos pela criadagem. Belindalva estava no jardim deitada, com os olhos esbugalhados e o corpo enrijecido.

       No seu epitáfio escreveu:

      “Aqui jaz, a única que conseguiu me dar uma verdadeira prova de amor”.



quinta-feira, 12 de agosto de 2010

REENCONTRO


Um desabafo, um chamamento, a afinidade e estávamos juntos novamente. As mudanças físicas foram poucas, mas todas para melhor, as mulheres perderam peso e ganharam maturidade, os homens alguns fios prateados e muito senso de humor. Entre risos e novidades o sentimento de estarmos juntos e compartilhar as experiências dos anos sem escrever. Enfim a decisão de nos encontrarmos semanalmente, renascendo um grupo que tem como objetivo escrever, aprender e conviver.


Primeira reunião do grupo dos escritores de romance histórico: Ivete Torres, Luiz Hugo Burin, Remaldo Cassol e Mariane Macedo

domingo, 25 de julho de 2010

“ Mil gracias”


                                                                                                            Mariane de Macedo
                                                                                                            21 de julho de 2010 

Passados trinta dias da partida de nosso colega Valton, lembrei que no ano de 2004 estivemos juntos em uma convivência que ainda guardamos na intimidade. Éramos dez colegas: Carlos Alberto, Dina, Francelina, Ivete, Mariane, Mário Eugênio, Norton, Renato, Valton e Zilah, além de Alcy, nosso mestre. Durante as manhãs de sábado líamos nossos textos e ouvíamos os dos colegas, dos quais ficávamos curiosos para saber o desenrolar de cada personagem. Ao término da oficina a coroação do trabalho, que juntos construímos: “Caçapava Contando Histórias”.

Geralmente formamos um pensamento de que as coisas são por acaso, no entanto o acaso não existe quando se busca algo que é comum. E no nosso caso, o gosto pela literatura, pelo aprendizado, pela leitura permitiu que estivéssemos juntos, por um período de oito meses, formando este grupo.

Olhei uma fotografia nossa e senti uma nostalgia e, então fiquei me perguntando. Será que perdemos o gosto pela literatura, aprendizado ou pela leitura? Tenho certeza que não. No entanto, fizemos parte uns da vida dos outros, nos sentimos bem juntos, mas só nos encontramos eventualmente. O que será que aconteceu conosco? Perdemos a sensibilidade? Para responder a tantos questionamentos lancei mão dos sentimentos que me ocorriam.

O primeiro foi a saudades, de algumas pessoas das quais tivemos um enorme prazer em conviver e, quando foram embora sentimos muita falta, pois gostaríamos que permanecessem conosco, só mais um pouquinho. Segundo, a impotência diante da realidade da vida, que nos convida ao aprendizado, às vezes doloroso, onde não temos tempo de nos despedir dos nossos amores, que partem sem aviso prévio. E o último a raiva, tão difícil de admitirmos, pois sempre a percebemos como ruim*. Ela aparece quando sabemos que todos nós iremos partir e, de nunca estarmos com a mala pronta. Mas será que conseguimos pensar nas coisas que deveríamos fazer antes de partir? tais como: de abraçarmos as pessoas diariamente, de falarmos o quanto necessitamos delas, de não termos vergonha de demonstrar afeto e de ligarmos para aqueles aos quais compartilhamos momentos maravilhosos, como foram os nossos.

E, ainda, tentando achar resposta a esses questionamentos, peguei o nosso livro “Caçapava Contando Histórias”, e comecei a ler nossas apresentações, mas fiz questão de ler a do nosso colega Valton. Ele começa demonstrando o orgulho de sua origem gaúcha, o amor ao pai que a pouco havia partido. O amor a mãe a qual caracterizava como alguém forte, mas dócil. Além disto, agradece-os pela herança do estudo e de ser gaúcho. Fala dos irmãos, onde cita nominalmente cada um, demonstrando a importância destes em sua vida. Retrata uma personalidade que valoriza a simplicidade e a constância de atitudes. Diz que foi para a oficina com os tentos, mas com o Alcy e os colegas aprendeu a guasqueá-los. “A eles, mil gracias”.

O Chirú deixou uma bela lição antes de partir, como um sinal para as nossas vidas: de que devemos ser o que sentimos. Ninguém mais que ele registrou tão claramente isto, escrevendo abertamente o que sentia pela família. Seus valores, origem, afeto, construiu uma história curta, mas plena e rodeada de amor.

E para que a vida, se não for para construir o amor? Este sentimento que aparece em pequenos sinais, como nas palavras faladas ou escritas, gestos, olhares, telefonemas, apertos de mão, beijos e tantos outros. A ti, querido Chirú, que o Patrão velho do céu abra as porteiras e que aqueles que te recebem tirem os seus chapéus, pois o teu sinal respondeu as nossas perguntas. “Mil gracias.”



*Não existem sentimentos bons ou ruins, pois sentir é saudável. O negativo é o que fizemos com o que sentimos, ou não sentirmos nada.

OBS: Aos colegas que compartilham dos mesmos sentimentos, entrem em contato: marianemacedo@hotmail.com



quarta-feira, 7 de julho de 2010

ISABELLAS


Mariane de Macedo


De tempos em tempos somos surpreendidos por acontecimentos que deixam a sociedade mobilizada, como no caso de Isabella Nardoni. Ficamos estarrecidos pela crueldade e frieza do ato. A população, curiosa, acompanha, passo a passo, e deseja justiça a qualquer preço. Faz plantão nas residências, nas delegacias, por onde passam os protagonistas, supostos responsáveis por esta tragédia. Os sentimentos que permeiam o comportamento das pessoas são os mais distintos, desde a curiosidade até a identificação. Alguns tratam do fato como se fosse um programa de televisão, sem se darem conta do número de Isabellas que existem ocultas por aí. No entanto, elegeram-na como representante das demais, para ilustrarem a sua própria indignação.
Nas histórias infantis, sempre ouvimos falar da madrasta perversa que, para a maioria das pessoas, não representa nenhuma novidade. Mas ainda se acreditava no pai, que sempre dava um jeito de defender os filhos. Embora algumas vezes fosse omisso, como na fábula da Cinderela. Infelizmente, os noticiários revelam, através das perícias, que não entrou outra pessoa no prédio da família Nardoni, recaindo sobre o pai da menina a suspeita de participação no episódio. Não mimetizando a fábula.
A menina foi asfixiada e posteriormente jogada do sexto andar do prédio, com a possibilidade de ter sido, inclusive, mediante a presença dos irmãos menores. Inacreditável pensar que tal procedimento parta dos cuidadores destas três crianças. Além disto, também impressiona a postura do avô e da tia, que mesmo diante das evidências da perícia, continuam camuflando uma conduta equivocada. É daí que se pode explicar a falta de afetividade de um pai que tem a filha morta e mente para defender a esposa desequilibrada. E por um motivo torpe: ciúmes.
Hoje são comuns casamentos rompidos, pessoas deixarem de se gostar, principalmente quando não existe mais respeito por parte dos cônjuges. Na maioria das vezes, o casal já tem filhos. Mas isto não deve ser impeditivo para constituir novas famílias. Assim, os filhos deverão conviver com os pais, partindo da premissa que não existe divórcio de filho. Portanto, quem casa com um homem ou mulher que possui filhos, deve ter claro que esta convivência será inevitável. Assim, o indivíduo que não tem estrutura para conviver com a realidade, não deve se arvorar ao título de padrasto ou madrasta. Mas, infelizmente nem sempre é o que acontece.
Estas relações acabam sendo permeadas de perversidade. Quando os adultos têm que enfrentar algo desconhecido, geralmente resistem. Um colega novo, um professor novo, um trabalho novo ou qualquer situação em que não estejam preparados desestrutura-os. Que atitude esperar então de uma criança? Ela que se constrói dentro da relação com os cuidadores, que são os pais. É natural que seu pai ou sua mãe, casando novamente, desperte no filho ciúmes da nova relação. De acordo com o imaginário infantil, acredita que não será mais amado - o que aconteceu no caso de Isabela - e passa a ter comportamentos de birra, condizente para uma criança. Diferente da atitude que se espera dos adultos, que devem ter o equilíbrio suficiente para orientar os pequenos. Entretanto, em adultos imaturos, a conduta é infantil. Agem como crianças, fazendo competição, dentro daquilo que foi construído pela sua paranóia.
A madrasta terceirizou sua felicidade quando passou a viver à sombra da ex-esposa, mãe da menina, que por sua vez nem estava mais preocupada com o ex-marido. Mas, na fantasia da madrasta a criança era a própria mãe. A coitada não se dava conta que quanto mais ela falava na ex-esposa, mais viva ela ficava. E em meio a patologias não tratadas, a criança sofreu as conseqüências, perdendo a vida.
Um marido que ama a esposa, e é equilibrado, não compactuaria com qualquer comportamento de agressividade. Ainda mais, contra sua própria filha. Além disto, ao compartilharem a doença de odiar a mãe da menina, mataram todos os filhos. Uma fisicamente e dois psicologicamente.
Por mais furiosa que uma pessoa esteja, ela tem noção do certo e errado. Só quando a lógica é construída para beneficio próprio, onde o indivíduo visa apenas o seu bem-estar, em detrimento do outro, ele age assim. Não tolera frustrações, exigindo ser atendido incondicionalmente. Tenta convencer os outros da injustiça que está sofrendo, usando da sedução. Alguns, inclusive choram e gritam para camuflar a própria indiferença, diante das necessidades dos outros, mesmo que sejam seus filhos. Mas, neste caso, não estamos falando propriamente de um pai, mas de um psicopata, que, por acaso, tem filho. Portanto, ambos estão no mesmo nível de desenvolvimento emocional.
Quantas Isabellas precisarão morrer para que busquemos as respostas em nós. Quando uma relação não dá certo não existe apenas um responsável, pois se pressupõe que o envolvimento seja entre duas pessoas, portanto, não é unilateral. Ambos estão imbricados neste contexto, que é só deles. A partir do momento em que há a separação, tudo acabou. Está solucionado o que já não tinha mais solução. Assim, devem tentar como pessoas maduras, conversar sobre o bem-estar dos filhos, assumindo a própria vida, sem responsabilizar o outro pela sua felicidade ou desdita.
Somente quando os sentimentos não estão esgotados, os indivíduos permitem que estes direcionem suas vidas. Ficam escravos do ressentimento, da mágoa e da raiva. Neste caso, a solução é buscar ajuda profissional.
A vida é um constante aprendizado. Necessitamos repensar as nossas atitudes. Mas, só é possível quando somos humildes, deixando a prepotência de lado, para conseguir enxergar nossas imperfeições. Os outros não têm que ser como desejamos, mas da forma que são. Se quisermos modificá-los precisamos dar o exemplo. Matar, tanto fisicamente como psicologicamente os filhos, por pior que sejam - e eles só o são porque se identificaram com a personalidade afim, dentro do grupo familiar - só demonstra a pouca saúde mental de muitos casais, que matam ou abandonam os filhos.
Para Isabella, desejamos que tenha ficado no seu imaginário as histórias dos contos de fadas, onde a princesinha maltratada sempre recebia o afago dos anjos. Para Ana Carolina Oliveira, o dia das mães não vai ser comemorado da mesma forma. Apenas um quarto vazio e silencioso, e um sussurro de “Boa noite! Dorme com Deus, Nossa Senhora e os anjinhos”, que não terá eco. Ficará a certeza do amor, que permanecerá em seu coração, por aquela luz que esteve consigo, e a acompanhará pela eternidade.

OBS: Texto escrito na época da morte de Isabela Nardoni.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA

Mariane de Macedo

Outro dia recebi um e-mail de uma colega, que falava sobre o NÃO que Eloá dera ao namorado, ambos protagonistas das cenas que acompanhamos há algumas semanas pelos telejornais. Falava a colega neste e-mail que, antes do NÃO de Eloá faltaram muitos outros, que não foram ditos a Lindemberg na infância, dando-lhe limites.
Concordo com a colega, pois a falta de limite é uma das primeiras características apresentadas pela personalidade transgressora. A conduta do rapaz caracteriza uma personalidade psicopata, que não pode ser contrariada e não reconhece o outro como alguém que sente e pensa. Ao se sentir injustiçado perante a rejeição, toma uma atitude violenta e vingativa.
Independente de raça, cultura, credo, gênero ou nível social o psicopata pode se camuflar de trabalhador, executivo, político, pai, mãe, filho (a), esposo (a), sogra (embora muitos acreditem que todas sejam), cunhadas e outros.
A palavra psicopata vem do grego Psyque = mente, pathos = doença = doença da mente. Embora etimologicamente a designação apareça como doença da mente, o psicopata não provém de mente adoecida, mas sim de um raciocínio frio e calculista combinado com uma total incapacidade de tratar as outras pessoas como seres humanos pensantes e com sentimentos, segundo a Dra. Ana Beatriz Silva.
Para Dr. Robert Hare, psiquiatra canadense, uma das maiores autoridades sobre o assunto, “os psicopatas tem total ciência dos seus atos, pois a parte cognitiva e racional é perfeita, ou seja, sabem perfeitamente que estão infringindo regeras sociais e por que estão agindo dessa maneira.” A deficiência deles (e é ai que mora o perigo) está no campo dos afetos e das emoções. Assim, para eles, tanto faz ferir, maltratar ou até matar alguém que atravesse o seu caminho ou os seus interesses, mesmo que este alguém faça parte de seu convívio íntimo.
São criaturas inescrupulosas, dissimuladas, mentirosas, sedutoras e que visam o próprio benefício. Incapazes de estabelecer vínculos afetivos, portanto jamais reconhecem a existência do outro. Desprovidos de culpa ou remorso. Revelam-se agressivos e violentos quando são flagrados em erro e sentem-se sem saída.
Ao contrário do que a maioria pensa, o psicopata nem sempre está preso e é aquele que mata fisicamente. Entretanto está sempre pronto a matar psicologicamente. Pois, para conseguir seus objetivos utiliza-se de todas as armas. A mais comum é despertar no outro pena, pois sabe que ao sentirmos pena ficamos suscetíveis a cair na sua armadilha. Embora não sinta, ele racionalmente entende como é o sentimento e vê como as pessoas se comportam quando estão com pena, então ele mimetiza, inclusive com lágrimas copiosas, fazendo sua vítima acreditar na suposta angústia. Às vezes, não nos damos conta da sutileza, por exemplo: quando encontramos alguém meio descansado, que não quer pegar no batente, justificando que as coisas estão difíceis. Que se não receber ajuda morrerá, ou ficará doente, ou que não tem mais idade para trabalhar, ou ainda, que tem que ficar em casa para cuidar dos pais velhinhos. Atenção! Pois este comportamento aparentemente inofensivo esconde uma pessoa dissimulada e que deseja que os outros laborem por ela. Fica escorada, come, bebe, se pendura ao telefone, aluga o computador por longas horas, visando atender suas necessidades, em detrimento das do outro. Adepto a lei do menor esforço crê ser merecedor de tais deferências, que uma vez feitas como favor, passam a serem regras eternamente exigidas.
Além disto, é o eterno perseguido. Todas as pessoas acordam de manhã prontas para lhe incomodar. Acredita que o mundo gira em torno de si, e que todos estão dispostos a montar estratégias de guerrilha, ou seja, ninguém trabalha. Esta crença do psicopata também está ligada a necessidade de excitação, pois são intolerantes a situações rotineiras. Não conseguem exercer tarefas que demandem alta concentração. Geralmente são provocantes e gostam de instigar os outros pelo mero prazer de divertimento imediato. Adoram gerar sentimentos negativos, se comprazem quando o outro sente raiva (sentimento mais comum nas pessoas próximas).
Desta forma, a convivência com um psicopata é uma verdadeira tortura. O grau de exigência exacerbado faz com que as pessoas deixem a condição humana para assumir o papel de super-herói, no intuito de atendê-los. Mas, mesmo que suas expectativas sejam cumpridas, ainda assim, não é suficiente pelo seu vazio de significado de que são portadores. Os outros não podem errar “jamais”, em relação a ele (psicopata). Acreditam que a ação do outro foi premeditada, intencional e com objetivo de humilhá-lo, projetando a própria conduta. Mesmo que a pessoa se explique e peça desculpa, não aceita pelo sentimento de injustiça que lhe acompanha. Entretanto, quando aplica as mesmas ações atribui ao exagero do outro. Jamais pedindo desculpas, pois considera que não erra. Adora fazer o outro se sentir culpado e geralmente coloca-se como vítima em situações que foram premeditadas por ele, e para que fique mais evidente sua inocência, expõe a todos o erro alheio.
Cada um de nós conhece ou conhecerá alguma dessas características, em uma ou mais pessoas durante sua existência. Muitos já foram manipulados por elas, alguns vivem forçosamente com as próprias e outros tentam reparar os danos materiais e psicológicos por elas causados. Assim, quando assistimos a personagem Flora (atual novela das vinte horas), astuta, manipuladora, sedutora, fazendo intrigas, já reconhecemos que não é característica apenas dos folhetins. Portanto, precisamos de um manual de sobrevivência para com os psicopatas que andam soltos por ai e, estabelecermos mais “NÃOS” para que outros não se construam.