sexta-feira, 3 de setembro de 2010

A PROVA DE AMOR

Mariane de Macedo

              Na cidade de Conceição, a rua principal era paralela ao rio que banhava o lugar. No lado direito, casas coloridas com tribeiras em tons mais fortes, no esquerdo um corredor de plátanos enfeitava a margem do Rio das Antas. Além das moradias estavam todos os estabelecimentos comerciais — a correaria do João das Cordas, a confeitaria do Antonio e a venda do seu Manuel. Nesses locais os moradores de Conceição ficavam informados sobre os acontecimentos, antes mesmo de serem noticiados na rádio local. Mas dos três pontos era a venda o estabelecimento mais popular. Além de ser o mais bem localizado, ali havia mesas e cadeiras de pau a pique que acomodavam a clientela, tanto dentro como fora da venda, aproveitando a sombra das árvores que se estendiam sobre o telhado das casas. O vendeiro usava um avental branco, alvejado de anil, que utilizava para limpar as mãos antes de cumprimentar os clientes. Tratava-os com especial atenção, tapinha nas costas, sorriso de orelha a orelha e várias iguarias sobre as mesas, que iam direto para a caderneta no final da reunião.

             — O Manuel não poupa uma — dizia Inocêncio, seu cliente mais assíduo.

            Inocêncio era um homem simples, pacato, nunca alterava a voz, era de poucas palavras — às vezes em que abria a boca era algo de fundamento — afirmavam alguns dos clientes do Seu Manuel — embora muitos o considerassem abobado, pois não completara os estudos e nem dava sorte com o trabalho. Outros lhe achavam de um tipo estranho e solitário.

            No lugarejo e em especial na venda do Seu Manuel, as conversas passavam de boca em boca sem muita cerimônia, independente da permissão do vivente. E para Inocêncio as coisas não eram diferentes, aliás, ele sempre fora alvo de muita curiosidade. Vez por outra, quando não estava presente era personagem de pesquisa.

            — O que leva um homem a ficar sozinho por tanto tempo — cismavam alguns.

           — Mas as moças estão sempre lhe cortejando, o que há com o Inocêncio, pois até é bem afeiçoado.

          E assim a conversa ia se multiplicando, até um dia chegar aos ouvidos de Inocêncio, que respondia:

          — Não achei aquela que me dê uma prova de amor — e seguia quieto palitando os dentes com o olhar no horizonte.

           Aquela resposta virou confusão. O boato ia para lá e para cá, apenas com novo título —. Qual será a prova de amor que o Inocêncio precisa para se casar — Manuel instigava a clientela a descobrir — Ele está é muito exigente — saltava um — Deste jeito ficará solteirão — dizia outro. E a discussão ia até tarde da noite, enquanto Inocêncio permanecia distante daquele falatório, aguardando a sua prova de amor.

           Certa feita apareceu na venda um fazendeiro, que por morar no cafundó do município, quase não saía da casa grande. Mas, naquele dia se obrigou ir à cidade. Já havia recebido dois recados, que ainda não atendera, para uma entrevista com São Pedro, e precisava tomar uma providência.

           — Preciso casar minha única filha — dizia o velhinho preocupado — Tenho umas quantas léguas de terra, que já passei para Belindalva, mas quero uma pessoa honesta e trabalhadora, que cuide e proteja minha filha — a clientela da venda ficou entreolhando-se, mas não se atreveram a dizer nada, até a saída do fazendeiro.

          — Mas quem vai se animar a casar com aquela moça mais escroncha, que cobre o rosto pra tapar a feiúra? — ria Seu Manuel, acompanhado pelos freqüentadores do estabelecimento — A coitada vai ficar solteira por muito tempo — e as gargalhadas se multiplicavam.

          O clima já não permitia os encontros na frente da venda e num sábado chuvoso, cujo único entretenimento era a rádio local, os moradores de Conceição receberam a notícia, através das notas sociais. A Belindalva ia se casar. A informação foi veloz como uma flecha, debaixo dos guarda chuvas e sombrinhas, todos queriam saber sobre o noivo.  

          — Quem será a pobre vítima — perguntava a esposa de seu Manuel, sacolejando a barriga de tanto rir.

          — Deve ser gente de fora que não sabe que a bichinha é danada de feia — completou o João das Cordas.

         — Que nada é alguém mais feio do que ela — acrescentou o Antonio da confeitaria — e quando ia continuar foi interrompido por uma voz que vinha dos bancos do fundo da venda, ela era mansa e deixou um silêncio surdo no ar.

         — Sou eu o noivo! — e Inocêncio saiu arrastando as botas rua a fora em direção à margem do rio — Ela aceitou me dar uma prova de amor— enquanto todos permaneceram na porta da venda olhando-o.

         — Pobre do Inocêncio vai casar com aquilo! — falava o leiteiro —Só podia ser ele mesmo um homem tão manso.

        — Mas será que ela deu a tal prova de amor para o Inocêncio — diziam as mulheres curiosas.

       — Ele é tão abobado que não prestou atenção na feiúra da noiva, que estava com um véu no rosto — completava Seu Manuel.

       Os plátanos já haviam perdido suas folhas e o futuro sogro de Inocêncio foi para a entrevista, deixando a filha sob os cuidados do noivo, que não demorou a marcar a data do casamento. Mas não sem antes ter a promessa da moça de lhe dar a prova de amor.

       Casaram-se numa noite fria de inverno, o que novamente foi alvo de comentários: ele queria motivo para tapar bem o rosto de Belindalva.

       O casamento foi na fazenda. Grande fartura, como era do gosto de seu falecido pai. Enquanto os convidados seguiam para suas casas, o casal se retirou para a noite de núpcias, mas antes que a noiva tirasse o véu, Inocêncio cobrou o prometido.

       — Meu bem, se me amas de verdade deves passar essa primeira noite no jardim. Assim terei a certeza que não te importas de casar com um homem burro como eu.

        E ela foi.

        Inocêncio foi acordado aos gritos pela criadagem. Belindalva estava no jardim deitada, com os olhos esbugalhados e o corpo enrijecido.

       No seu epitáfio escreveu:

      “Aqui jaz, a única que conseguiu me dar uma verdadeira prova de amor”.



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