domingo, 25 de julho de 2010

“ Mil gracias”


                                                                                                            Mariane de Macedo
                                                                                                            21 de julho de 2010 

Passados trinta dias da partida de nosso colega Valton, lembrei que no ano de 2004 estivemos juntos em uma convivência que ainda guardamos na intimidade. Éramos dez colegas: Carlos Alberto, Dina, Francelina, Ivete, Mariane, Mário Eugênio, Norton, Renato, Valton e Zilah, além de Alcy, nosso mestre. Durante as manhãs de sábado líamos nossos textos e ouvíamos os dos colegas, dos quais ficávamos curiosos para saber o desenrolar de cada personagem. Ao término da oficina a coroação do trabalho, que juntos construímos: “Caçapava Contando Histórias”.

Geralmente formamos um pensamento de que as coisas são por acaso, no entanto o acaso não existe quando se busca algo que é comum. E no nosso caso, o gosto pela literatura, pelo aprendizado, pela leitura permitiu que estivéssemos juntos, por um período de oito meses, formando este grupo.

Olhei uma fotografia nossa e senti uma nostalgia e, então fiquei me perguntando. Será que perdemos o gosto pela literatura, aprendizado ou pela leitura? Tenho certeza que não. No entanto, fizemos parte uns da vida dos outros, nos sentimos bem juntos, mas só nos encontramos eventualmente. O que será que aconteceu conosco? Perdemos a sensibilidade? Para responder a tantos questionamentos lancei mão dos sentimentos que me ocorriam.

O primeiro foi a saudades, de algumas pessoas das quais tivemos um enorme prazer em conviver e, quando foram embora sentimos muita falta, pois gostaríamos que permanecessem conosco, só mais um pouquinho. Segundo, a impotência diante da realidade da vida, que nos convida ao aprendizado, às vezes doloroso, onde não temos tempo de nos despedir dos nossos amores, que partem sem aviso prévio. E o último a raiva, tão difícil de admitirmos, pois sempre a percebemos como ruim*. Ela aparece quando sabemos que todos nós iremos partir e, de nunca estarmos com a mala pronta. Mas será que conseguimos pensar nas coisas que deveríamos fazer antes de partir? tais como: de abraçarmos as pessoas diariamente, de falarmos o quanto necessitamos delas, de não termos vergonha de demonstrar afeto e de ligarmos para aqueles aos quais compartilhamos momentos maravilhosos, como foram os nossos.

E, ainda, tentando achar resposta a esses questionamentos, peguei o nosso livro “Caçapava Contando Histórias”, e comecei a ler nossas apresentações, mas fiz questão de ler a do nosso colega Valton. Ele começa demonstrando o orgulho de sua origem gaúcha, o amor ao pai que a pouco havia partido. O amor a mãe a qual caracterizava como alguém forte, mas dócil. Além disto, agradece-os pela herança do estudo e de ser gaúcho. Fala dos irmãos, onde cita nominalmente cada um, demonstrando a importância destes em sua vida. Retrata uma personalidade que valoriza a simplicidade e a constância de atitudes. Diz que foi para a oficina com os tentos, mas com o Alcy e os colegas aprendeu a guasqueá-los. “A eles, mil gracias”.

O Chirú deixou uma bela lição antes de partir, como um sinal para as nossas vidas: de que devemos ser o que sentimos. Ninguém mais que ele registrou tão claramente isto, escrevendo abertamente o que sentia pela família. Seus valores, origem, afeto, construiu uma história curta, mas plena e rodeada de amor.

E para que a vida, se não for para construir o amor? Este sentimento que aparece em pequenos sinais, como nas palavras faladas ou escritas, gestos, olhares, telefonemas, apertos de mão, beijos e tantos outros. A ti, querido Chirú, que o Patrão velho do céu abra as porteiras e que aqueles que te recebem tirem os seus chapéus, pois o teu sinal respondeu as nossas perguntas. “Mil gracias.”



*Não existem sentimentos bons ou ruins, pois sentir é saudável. O negativo é o que fizemos com o que sentimos, ou não sentirmos nada.

OBS: Aos colegas que compartilham dos mesmos sentimentos, entrem em contato: marianemacedo@hotmail.com



quarta-feira, 7 de julho de 2010

ISABELLAS


Mariane de Macedo


De tempos em tempos somos surpreendidos por acontecimentos que deixam a sociedade mobilizada, como no caso de Isabella Nardoni. Ficamos estarrecidos pela crueldade e frieza do ato. A população, curiosa, acompanha, passo a passo, e deseja justiça a qualquer preço. Faz plantão nas residências, nas delegacias, por onde passam os protagonistas, supostos responsáveis por esta tragédia. Os sentimentos que permeiam o comportamento das pessoas são os mais distintos, desde a curiosidade até a identificação. Alguns tratam do fato como se fosse um programa de televisão, sem se darem conta do número de Isabellas que existem ocultas por aí. No entanto, elegeram-na como representante das demais, para ilustrarem a sua própria indignação.
Nas histórias infantis, sempre ouvimos falar da madrasta perversa que, para a maioria das pessoas, não representa nenhuma novidade. Mas ainda se acreditava no pai, que sempre dava um jeito de defender os filhos. Embora algumas vezes fosse omisso, como na fábula da Cinderela. Infelizmente, os noticiários revelam, através das perícias, que não entrou outra pessoa no prédio da família Nardoni, recaindo sobre o pai da menina a suspeita de participação no episódio. Não mimetizando a fábula.
A menina foi asfixiada e posteriormente jogada do sexto andar do prédio, com a possibilidade de ter sido, inclusive, mediante a presença dos irmãos menores. Inacreditável pensar que tal procedimento parta dos cuidadores destas três crianças. Além disto, também impressiona a postura do avô e da tia, que mesmo diante das evidências da perícia, continuam camuflando uma conduta equivocada. É daí que se pode explicar a falta de afetividade de um pai que tem a filha morta e mente para defender a esposa desequilibrada. E por um motivo torpe: ciúmes.
Hoje são comuns casamentos rompidos, pessoas deixarem de se gostar, principalmente quando não existe mais respeito por parte dos cônjuges. Na maioria das vezes, o casal já tem filhos. Mas isto não deve ser impeditivo para constituir novas famílias. Assim, os filhos deverão conviver com os pais, partindo da premissa que não existe divórcio de filho. Portanto, quem casa com um homem ou mulher que possui filhos, deve ter claro que esta convivência será inevitável. Assim, o indivíduo que não tem estrutura para conviver com a realidade, não deve se arvorar ao título de padrasto ou madrasta. Mas, infelizmente nem sempre é o que acontece.
Estas relações acabam sendo permeadas de perversidade. Quando os adultos têm que enfrentar algo desconhecido, geralmente resistem. Um colega novo, um professor novo, um trabalho novo ou qualquer situação em que não estejam preparados desestrutura-os. Que atitude esperar então de uma criança? Ela que se constrói dentro da relação com os cuidadores, que são os pais. É natural que seu pai ou sua mãe, casando novamente, desperte no filho ciúmes da nova relação. De acordo com o imaginário infantil, acredita que não será mais amado - o que aconteceu no caso de Isabela - e passa a ter comportamentos de birra, condizente para uma criança. Diferente da atitude que se espera dos adultos, que devem ter o equilíbrio suficiente para orientar os pequenos. Entretanto, em adultos imaturos, a conduta é infantil. Agem como crianças, fazendo competição, dentro daquilo que foi construído pela sua paranóia.
A madrasta terceirizou sua felicidade quando passou a viver à sombra da ex-esposa, mãe da menina, que por sua vez nem estava mais preocupada com o ex-marido. Mas, na fantasia da madrasta a criança era a própria mãe. A coitada não se dava conta que quanto mais ela falava na ex-esposa, mais viva ela ficava. E em meio a patologias não tratadas, a criança sofreu as conseqüências, perdendo a vida.
Um marido que ama a esposa, e é equilibrado, não compactuaria com qualquer comportamento de agressividade. Ainda mais, contra sua própria filha. Além disto, ao compartilharem a doença de odiar a mãe da menina, mataram todos os filhos. Uma fisicamente e dois psicologicamente.
Por mais furiosa que uma pessoa esteja, ela tem noção do certo e errado. Só quando a lógica é construída para beneficio próprio, onde o indivíduo visa apenas o seu bem-estar, em detrimento do outro, ele age assim. Não tolera frustrações, exigindo ser atendido incondicionalmente. Tenta convencer os outros da injustiça que está sofrendo, usando da sedução. Alguns, inclusive choram e gritam para camuflar a própria indiferença, diante das necessidades dos outros, mesmo que sejam seus filhos. Mas, neste caso, não estamos falando propriamente de um pai, mas de um psicopata, que, por acaso, tem filho. Portanto, ambos estão no mesmo nível de desenvolvimento emocional.
Quantas Isabellas precisarão morrer para que busquemos as respostas em nós. Quando uma relação não dá certo não existe apenas um responsável, pois se pressupõe que o envolvimento seja entre duas pessoas, portanto, não é unilateral. Ambos estão imbricados neste contexto, que é só deles. A partir do momento em que há a separação, tudo acabou. Está solucionado o que já não tinha mais solução. Assim, devem tentar como pessoas maduras, conversar sobre o bem-estar dos filhos, assumindo a própria vida, sem responsabilizar o outro pela sua felicidade ou desdita.
Somente quando os sentimentos não estão esgotados, os indivíduos permitem que estes direcionem suas vidas. Ficam escravos do ressentimento, da mágoa e da raiva. Neste caso, a solução é buscar ajuda profissional.
A vida é um constante aprendizado. Necessitamos repensar as nossas atitudes. Mas, só é possível quando somos humildes, deixando a prepotência de lado, para conseguir enxergar nossas imperfeições. Os outros não têm que ser como desejamos, mas da forma que são. Se quisermos modificá-los precisamos dar o exemplo. Matar, tanto fisicamente como psicologicamente os filhos, por pior que sejam - e eles só o são porque se identificaram com a personalidade afim, dentro do grupo familiar - só demonstra a pouca saúde mental de muitos casais, que matam ou abandonam os filhos.
Para Isabella, desejamos que tenha ficado no seu imaginário as histórias dos contos de fadas, onde a princesinha maltratada sempre recebia o afago dos anjos. Para Ana Carolina Oliveira, o dia das mães não vai ser comemorado da mesma forma. Apenas um quarto vazio e silencioso, e um sussurro de “Boa noite! Dorme com Deus, Nossa Senhora e os anjinhos”, que não terá eco. Ficará a certeza do amor, que permanecerá em seu coração, por aquela luz que esteve consigo, e a acompanhará pela eternidade.

OBS: Texto escrito na época da morte de Isabela Nardoni.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA

Mariane de Macedo

Outro dia recebi um e-mail de uma colega, que falava sobre o NÃO que Eloá dera ao namorado, ambos protagonistas das cenas que acompanhamos há algumas semanas pelos telejornais. Falava a colega neste e-mail que, antes do NÃO de Eloá faltaram muitos outros, que não foram ditos a Lindemberg na infância, dando-lhe limites.
Concordo com a colega, pois a falta de limite é uma das primeiras características apresentadas pela personalidade transgressora. A conduta do rapaz caracteriza uma personalidade psicopata, que não pode ser contrariada e não reconhece o outro como alguém que sente e pensa. Ao se sentir injustiçado perante a rejeição, toma uma atitude violenta e vingativa.
Independente de raça, cultura, credo, gênero ou nível social o psicopata pode se camuflar de trabalhador, executivo, político, pai, mãe, filho (a), esposo (a), sogra (embora muitos acreditem que todas sejam), cunhadas e outros.
A palavra psicopata vem do grego Psyque = mente, pathos = doença = doença da mente. Embora etimologicamente a designação apareça como doença da mente, o psicopata não provém de mente adoecida, mas sim de um raciocínio frio e calculista combinado com uma total incapacidade de tratar as outras pessoas como seres humanos pensantes e com sentimentos, segundo a Dra. Ana Beatriz Silva.
Para Dr. Robert Hare, psiquiatra canadense, uma das maiores autoridades sobre o assunto, “os psicopatas tem total ciência dos seus atos, pois a parte cognitiva e racional é perfeita, ou seja, sabem perfeitamente que estão infringindo regeras sociais e por que estão agindo dessa maneira.” A deficiência deles (e é ai que mora o perigo) está no campo dos afetos e das emoções. Assim, para eles, tanto faz ferir, maltratar ou até matar alguém que atravesse o seu caminho ou os seus interesses, mesmo que este alguém faça parte de seu convívio íntimo.
São criaturas inescrupulosas, dissimuladas, mentirosas, sedutoras e que visam o próprio benefício. Incapazes de estabelecer vínculos afetivos, portanto jamais reconhecem a existência do outro. Desprovidos de culpa ou remorso. Revelam-se agressivos e violentos quando são flagrados em erro e sentem-se sem saída.
Ao contrário do que a maioria pensa, o psicopata nem sempre está preso e é aquele que mata fisicamente. Entretanto está sempre pronto a matar psicologicamente. Pois, para conseguir seus objetivos utiliza-se de todas as armas. A mais comum é despertar no outro pena, pois sabe que ao sentirmos pena ficamos suscetíveis a cair na sua armadilha. Embora não sinta, ele racionalmente entende como é o sentimento e vê como as pessoas se comportam quando estão com pena, então ele mimetiza, inclusive com lágrimas copiosas, fazendo sua vítima acreditar na suposta angústia. Às vezes, não nos damos conta da sutileza, por exemplo: quando encontramos alguém meio descansado, que não quer pegar no batente, justificando que as coisas estão difíceis. Que se não receber ajuda morrerá, ou ficará doente, ou que não tem mais idade para trabalhar, ou ainda, que tem que ficar em casa para cuidar dos pais velhinhos. Atenção! Pois este comportamento aparentemente inofensivo esconde uma pessoa dissimulada e que deseja que os outros laborem por ela. Fica escorada, come, bebe, se pendura ao telefone, aluga o computador por longas horas, visando atender suas necessidades, em detrimento das do outro. Adepto a lei do menor esforço crê ser merecedor de tais deferências, que uma vez feitas como favor, passam a serem regras eternamente exigidas.
Além disto, é o eterno perseguido. Todas as pessoas acordam de manhã prontas para lhe incomodar. Acredita que o mundo gira em torno de si, e que todos estão dispostos a montar estratégias de guerrilha, ou seja, ninguém trabalha. Esta crença do psicopata também está ligada a necessidade de excitação, pois são intolerantes a situações rotineiras. Não conseguem exercer tarefas que demandem alta concentração. Geralmente são provocantes e gostam de instigar os outros pelo mero prazer de divertimento imediato. Adoram gerar sentimentos negativos, se comprazem quando o outro sente raiva (sentimento mais comum nas pessoas próximas).
Desta forma, a convivência com um psicopata é uma verdadeira tortura. O grau de exigência exacerbado faz com que as pessoas deixem a condição humana para assumir o papel de super-herói, no intuito de atendê-los. Mas, mesmo que suas expectativas sejam cumpridas, ainda assim, não é suficiente pelo seu vazio de significado de que são portadores. Os outros não podem errar “jamais”, em relação a ele (psicopata). Acreditam que a ação do outro foi premeditada, intencional e com objetivo de humilhá-lo, projetando a própria conduta. Mesmo que a pessoa se explique e peça desculpa, não aceita pelo sentimento de injustiça que lhe acompanha. Entretanto, quando aplica as mesmas ações atribui ao exagero do outro. Jamais pedindo desculpas, pois considera que não erra. Adora fazer o outro se sentir culpado e geralmente coloca-se como vítima em situações que foram premeditadas por ele, e para que fique mais evidente sua inocência, expõe a todos o erro alheio.
Cada um de nós conhece ou conhecerá alguma dessas características, em uma ou mais pessoas durante sua existência. Muitos já foram manipulados por elas, alguns vivem forçosamente com as próprias e outros tentam reparar os danos materiais e psicológicos por elas causados. Assim, quando assistimos a personagem Flora (atual novela das vinte horas), astuta, manipuladora, sedutora, fazendo intrigas, já reconhecemos que não é característica apenas dos folhetins. Portanto, precisamos de um manual de sobrevivência para com os psicopatas que andam soltos por ai e, estabelecermos mais “NÃOS” para que outros não se construam.

O SENTINELA

Mariane de Macedo

Ela vinha preocupada. A amiga de tantos anos estava passando mal. Ao chegar ao hospital, topou com um cachorro deitado na porta. Precisou pular por cima do bichinho. Ao sair, ele estava lá, no mesmo lugar, deitado com a cabeça entre as patinhas, olhos semi-abertos, numa preguiça dolorida. O limite era aquela porta, não podia entrar.
Inerte, sem poder fazer nada, o cãozinho observava o entra-e-sai das pessoas. Toda vez que a porta se abria, ele levantava as orelhas e abanava o rabo. Fazia menção de erguer-se e logo murchava outra vez. Assim, foi ficando cada vez mais encolhido, até adormecer enroscado num cantinho junto à parede.
Pela manhã, finalmente reconhece um cheiro familiar. E tenta seguir o rastro que ultrapassa a bendita porta. Num trotezinho ligeiro, avança confiante hospital adentro. Mesmo tentando uma gambeta, não escapa do porteiro:
- Te manda guaipeca!
Quanta diferença no tratamento. Em sua casa, apesar dos banhos que ele não gosta muito, dorme espichado sobre as pantufas em frente à lareira. E recebe cafuné toda a vez que se assusta com o espocar de foguetes. Se recusa a ração, ganha comida caseira, a que ele mais aprecia.
Opa! O focinho brilha se remexendo todo. O cheiro é forte. São vários odores e ele reconhece a todos. Segue-os afastando-se daquele lugar.
Entram numa casa desconhecida. Ninguém o impede de segui-los, mas ele, receoso, permanece sentado à porta. Espicha o focinho e procura um entre aqueles aromas. Sobre o centro da sala, o perfume das flores lhe confunde o faro. Mas é dali que vem o cheiro de cafuné.
Entra, todo assustado, e se aproxima cada vez mais daquele ponto. Sob aquela caixa comprida, ele adormece. Só acorda quando alguém lhe pisa na pata. Tenta fugir, mas não consegue. O ambiente é estranho e ele não encontra a saída. Vai seguindo aquela gente, devagarzinho, sempre no rastro do cheiro, que agora fica cada vez mais distante.
Correndo atrás do cortejo, um pouco na rua, às vezes na calçada, não se afasta da camionete que vai carregada de flores. Ganiça e late como que avisando que está ali, que não abandonou seu objetivo.
Chega exausto, a língua quase arrastando no chão. Sentado na sombra do muro, arquejando, balança a cabeça tentando recuperar o fôlego e resfriar o corpo. Depois, esgueirando-se entre muitas pernas, vê sumir num buraco o cheiro que perseguia.
Aos poucos, todos vão embora. Ele fica ali, deitado sobre uma pedra fria, o focinho entre as patas, gemendo fininho, até o fim.

Síndrome de Gabriela

Mariane de Macedo

Na década de setenta os brasileiros foram agraciados com a novela Gabriela baseada no romance de Jorge Amado. O folhetim encantava as mulheres pelo imenso amor de Nasib e incendiava o imaginário masculino pela beleza da atriz. Contava, ainda, com a voz melodiosa de Gal Costa que cantava o tema do romance, repetindo o refrão da música que dizia: “Eu nasci assim, eu cresci assim e vou ser sempre assim...”.
Retomo esta saudosa imagem para uma reflexão a cerca do comportamento humano. O homem diferencia-se dos demais animais pela capacidade de raciocínio. Os macacos apresentam alguns comportamentos que parecem lançar mão desta capacidade, no entanto é instinto. Eles podem usar uma caixa de banana como banco e serem copiados por outros símios, entretanto não tem a iniciativa de usar a mesma caixa para fazer de escada ou qualquer outro instrumento que viabilize as suas manifestações, construindo um conhecimento novo a partir deste. Já os humanos apresentam todas estas condições, mas o incrível é que na maioria das vezes comportam-se com total desconhecimento deste fato.
Nasce, cresce e permanece agindo com o que foi construído no seio familiar. Repetindo comportamentos como regras eternas. Não estou me reportando aos valores morais, que deverão ser perpetuados. Refiro-me a regras inúteis, teorias vazias que atendem apenas as necessidades dos outros. Externando algo que mutila, decepando a integridade pessoal do indivíduo.
Muitas das causas das depressões são decorrentes de distonias mentais, ou seja, a contradição entre o que se quer e o que se faz. “Tenho vontade de fazer, mas o que irão dizer de mim...”.O homem então arraigado em crenças arcaicas, em uma cultura que aprisiona passando a viver de acordo com normas pré-estabelecidas, que não estão escritas em lugar algum, mas o encarceram, tolindo qualquer possibilidade de mudança.
Muitos relacionamentos afetivos que não se concretizam são baseados no medo de entregar-se e perder o controle. Na realidade o indivíduo perde o controle, quando se deixa controlar por seu imaginário que lhe enclausura na construção interna. Em decorrência disto, o amor e a afetividade assumem um papel secundário e os relacionamentos passam a ser superficiais e ausentes para não se comprometerem. Este pensamento transforma as pessoas descartáveis, como se fossem mais um móvel da casa. Alguns indivíduos são eternos insatisfeitos, juízes da vida alheia que tem solução para todos, menos para si mesmo. A vida fica vazia e sem expectativas, pois o mundo passa a ser cruel, a insegurança interna faz com que todas as coisas sejam ruins. A derrota é questão de tempo. Afinal nasceram assim, cresceram assim, e vão ser mesmo assim...sindrômicos.
A psicologia nos leva a refletir sobre a importância das trocas entre pessoas como momentos significativos no processo de evolução e amadurecimento, diz que é através da relação com o outro que mudamos as perspectivas, repensamos valores, reabsorvemos informações menos preconceituosas, mudamos os desejos que estão sempre permeando as relações. Ao convivermos estaremos abrindo campo para o espelhamento percebendo-nos através do outro. Até mesmo nas relações desarmônicas podemos tirar um ensinamento positivo, pois em tudo existe algo de bom, ainda que seja para decidirmos o que não queremos.
Existem dois caminhos a seguir: nascer assim, crescer assim, ser mesmo assim... e ficar alheio a condição de ser humano, desprezando todo o cabedal intelectual, negando a afetividade com a justificativa do não sofrimento. Entretanto, o não sofrimento é verbal, pois implica em estar só. Ou, ainda, optar Poe entregar-se a vida usufruindo tudo que ela possibilita, vivendo as alegrias com intensidade para que quando houver alguma adversidade esteja forte.
É preciso que o indivíduo se reconstrua internamente rompendo o casulo para libertar-se destes conteúdos pré-estabelecidos e através das interações sociais internalize o EU (self). Acima de tudo nas vivências temos a possibilidade de trocas acreditando que o homem se constitui em confronto com as diferenças. O cotidiano é um laboratório que acorda para o significado da vida. O que é procurado tão longe, mas que está dentro de cada um.

TROCANDO OS MOCACINS

20 fevereiro 2007

A tribo indígena, os Xamãs, que vivera na América do Norte, utilizava-se de um ritual ao se deparar com uma situação difícil. Para resolver, reuniam-se numa tenda, todos sentados em forma de círculo. Mas, antes de entrarem, cada um dos participantes deveria deixar seus mocasins no lado de fora, e calçar o que havia sido deixado pelo que lhe antecedera. Quando o último chegava, o primeiro que havia entrado, calçava os seus mocasins, e davam início à reunião. Acreditavam que assim, poderiam colocar-se na pele do outro.

Dias atrás, o Brasil tomou conhecimento da trágica morte de João Hélio, uma criança de apenas seis anos de idade. Ao roubarem um carro, o grupo de rapazes, arrastou por longa distância o menino que ficara preso ao cinto de segurança. Embora tenha sido alertado, o motorista não parou. Todos nós estamos questionando a atitude violenta e as circunstâncias que ocasionaram essa morte.

Não foi a primeira vez que nos deparamos com notícias assim. A morte de uma menina, de catorze anos no metrô em São Paulo. O assassinato de um índio, cuja justificativa para o ato foi que pensavam ser um mendigo. Homens e mulheres bombas espalhando o terror em nome de uma crença. E tantos outros.

Ao ouvirmos quase que diariamente notícias como essas, agimos como se tudo isto fosse normal. É a vida humana, sendo banalizada sem objetivo algum.

Sabe-se que é comum morrer gente, pois faz parte da evolução. Mas, não é normal morrer nas circunstâncias em que estamos vendo. É comum assaltos e roubos, mas não é normal vivermos enjaulados e com medo. É comum as pessoas adoecerem, mas não é normal morrerem por falta de atendimento. É comum usar ônibus para chegar em casa ou no trabalho, mas não é normal usá-lo como crematório. É comum falar no outro, mas não é normal ser maledicente e perverso. É comum as pessoas ganharem salário mínimo, mas não é normal alguém que não trabalha ganhar vinte vezes mais. É comum pobres roubarem e serem presos, mas não é normal governantes nos saquearem todos os dias e ficarem impunes.

O homem tem condições de projetar máquinas que o levam à Lua, mas não consegue adentrar no coração das pessoas que vivem debaixo do seu teto. Aliás, quando consegue viver sob o mesmo teto. Será que não é por isto que os humanos estão frios, distantes, e nem se olham mais?

Assim, quando perdemos o poder de indignação estamos compactuando para que as coisas comuns, se tornem normais. Mas isto também não é normal, e sim, comum. Precisamos nos deixar afetar para agirmos, modificando esse contexto que nos circunda.

Quando ficamos horas à frente de um aparelho de televisão, somos apenas expectadores da vida, e é comum. É necessário que saiamos do comum. Fazermos algo como atores e autores da vida. Não é porque não foi na nossa casa que temos que apenas acharmos comum. Quantas crianças e jovens ainda precisarão morrer para que tenhamos coragem de sair da acomodação e participarmos de ações de paz? Se acharmos tudo isto comum, é compreensível que se torne normal educarmos os nossos filhos com frieza, pois assim eles também não sofrerão diante do inevitável. Acreditar que o comum é normal, nada mais é que a perpetuação da barbárie. Estamos no terceiro milênio, portanto é de se esperar que o homem tenha comportamentos mais ajustados, tendo em vista que evoluiu ao longo da história. O normal é que as pessoas sejam empáticas umas com as outras. Que se olhem nos olhos. Que não percam a vida por serem índio ou mendigo.
Exercer a nossa cidadania é imprescindível. Precisamos entrar na tenda e numa ação conjunta trocarmos os mocasins, assim, evitando que pais enterrem seus filhos e com eles seus sorrisos.

Mariane de Macedo