segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A Batalha

Mariane de Macedo
02 de setembro de 2010


                      Ana já estava com oito anos e com o nascimento do maninho, a mãe não conseguia mais levá-la à escola, que ficava a quatro quadras de sua casa. Era mês de março e a aula no horário em que o sol estava mais quente, por isso fora liberada a fazer aquele percurso. Durante o trajeto passava em frente a uma loja, onde permanecia por alguns minutos, observando os brinquedos na vitrine. A loja ficava em uma casa antiga, que havia sido reformada preservando o estilo colonial. Apenas uma vidraça inteira na janela mantendo a sacada de ferro, como forma de decoração. Mas, para Ana servia de degrau, onde ficava na ponta dos pés, que impulsionando o corpo sobre os ferros, visualizava os brinquedos. A boneca Susi vestida de noiva se destacava. Chegando em sua casa a menina foi ao encontro da mãe.

                  — Mãe, me dá a boneca lá da vitrine? — e para sua alegria a resposta foi positiva.

                  — Dou sim filha, depois de amanhã, quando seu pai voltar.

                  No dia seguinte a criança foi para a escola e só pensava no brinquedo. No recreio o assunto era a Susi de Ana: as colegas faziam acertos de como receberiam a nova amiga de suas bonecas e cada qual sugeria um nome. Algumas meninas brigavam porque desejavam ser madrinha da noiva. E assim, aquela tarde passou muito rápida. O sinal tocou, hora de ir.

                Na vitrine, a boneca piscava os olhos para menina, confirmando que no outro dia estariam juntas. Ana sorria. Despediu-se abanando, atirando beijos e um até amanhã. Não caminhava, saltitava rua fora a cantarolar.

               Naquela noite, o sono venceu os olhos que não queriam fechar, mas a boca não conseguiu colocar o sorriso para dormir. O sol não acordara e Ana já estava em pé, com agulha, linha e tecidos costurava algumas peças de roupas para sua filha. Já era quase meio dia, com o enxoval pronto a criança correu em direção à mãe.

             — Mãe! Vamos buscar minha Susi — convidou a menina.

             — Amanhã filha, hoje teu pai não está aí — e a mãe deu as costas e seguiu seus afazeres.

            Os olhos negros da criança foram se apagando junto com o sorriso. Ana saiu correndo sem olhar para trás. À medida que se distanciava da mãe, uma faca fincava-lhe na boca do estômago, deixando-a sem ar. Tentava gritar, mas apenas bolhas de saliva ocupavam a boca, cada vez que tentava abrí-la. As lágrimas percorriam-lhe a face rosada e infantil. O choro era apenas um grunhido baixinho, engolido pelo medo de ser descoberta sob a escada.

            No almoço a mãe não percebeu os olhos magoados da filha, nem lhe olhou. No caminho para à escola, mais uma espiadela na vitrine. A boneca permanecia lá, mas não lhe piscou os olhos.

            Na porta do colégio as coleguinhas vieram ao seu encontro, cheias de expectativas.

            — Ana, e a boneca? —perguntou uma das amigas.

            — Meu pai não estava ai — disse a menina com a voz embargada, e com os olhos baixos e úmidos — mas amanhã ele chega e minha mãe disse que vai me dar.

            Ela seguiu pelo corredor até a sala de aula sozinha, enquanto as colegas cochichavam.

           As horas não passavam, mas as folhas das árvores já começavam a cair, e o amanhã se distanciava. Mas o espiar na vitrine virou um ritual, percebido pelos donos da loja. Era um casal de velhinhos, que de tanto ver a menina pendurada enfrente a vidraça, convidavam-na para entrar na volta da escola. Ali ela ficava por alguns minutos e não desgrudava os olhos da Susi. O velhinho pegava a caixa da boneca e lhe oferecia para segurar um pouquinho. Com o peito batendo forte, as mãos suadas e um tremor no corpo agarrava a caixa devagar, olhando profundamente a boneca e depois a contraia ao peito, sabendo que era o fim de mais um encontro. Para casa, levava uma dor, que lhe doía no peito, até o outro dia.

            O frio intenso do inverno já não permitia as brincadeiras no pátio, e os recreios eram nos salões da escola, que convidavam às brincadeiras em grupinhos. Os meninos jogavam cartas ou bolinha de gude. As meninas brincavam de roda ou de bonecas. Ana assistia a tudo de longe, pois não tinha boneca e ninguém queria mais brincar com ela. As colegas riam e lhe chamavam de mentirosa. Ela corria pelo colégio fugindo da gurizada, que lhe provocava gritando bem alto. Mentirosa! Mentirosa!

           As estações continuaram a passar. Mas a menina ficou presa na vitrine. Ao ver-se nela refletida, o corpo estava adulto, e ali terminava sua batalha.

Nenhum comentário:

Postar um comentário